Público, Luísa Pinto, 09.10.04 As preocupações sobre a qualidade do urbanismo das cidades em que vivemos estão nos discursos e nas críticas de todos os candidatos às eleições autárquicas. Seja no litoral, seja no interior, mais nas áreas metropolitanas e menos nas cidades com menor pressão demográfica, há problemas que se repetem, e que levam o rótulo de caos e desordenamento urbanístico.
"Entre baldios urbanos e urbanizações sem qualquer racionalidade que
não seja a de construir o máximo possível, mais ainda o máximo
negociado com os serviços técnicos das autarquias, o território
continua a sofrer todo o tipo possível de agressões", sintetiza ao
PÚBLICO Mário Moutinho, reitor da Universidade Lusófona, e investigador
do Tercud - Centro de Estudos do Território, Cultura e Desenvolvimento.
Para Pedro Bingre, docente na Escola Superior Agrária de Coimbra e
mestre em Planeamento Regional e Urbano, este problema está
generalizado em todo o país. Só as pequenas vilas e pequenas cidades do
interior "onde o urbanismo ainda é interessante justamente porque nas
últimas décadas poucas urbanizações novas se fizeram mediante
loteamentos privados" poderão escapar a esta pesada sentença: a de que,
apesar dos bons arquitectos, engenheiros e até planeadores que existem
em Portugal, o que se constrói continua a ser feio e desqualificado.
Também Mário Moutinho considera que "não existem espaços urbanos
recentes que possam servir de referência para técnicos, construtores ou
mesmo para as pessoas em geral". É esta falta de referências que acaba
por prejudicar os consumidores, já que "basta uma promessa de jardim
sempre adiada para tomar a decisão de compra". O reitor da Lusófona
repara que encontramos nas cidades "condomínios da maior qualidade
arquitectónica em áreas verdadeiramente degradadas, sem acessibilidades
adequadas, sem infra-estruturas devidamente planeadas". Estes discursos
algo pessimistas esbarram com o entendimento de que existem bons
exemplos, sobretudo nos esforços que foram feitos para requalificar os
centros das cidades, através de iniciativas como o Polis. Guimarães e
Évora são um exemplos interessante, mas sobra, depois, a amnésia do que
é feito na restante cidade, como refere o geógrafo Álvaro Domingues.
Estas "aberrações" urbanas de grandes edifícios plantados junto de
construções antigas, ou de urbanizações encaixadas junto de leitos dos
rios, ou no que já foram bosques, têm quase sempre cobertura legal.
Como diz Mário Moutinho, o facto de as novas urbanizações terem por
base o cadastro rural, transformado à pressa em urbano, não assegurou o
entendimento do território como algo de contínuo. "Cada caso acaba nos
limites do terreno urbanizado. Neste contexto é difícil assegurar uma
gestão urbanística consistente", afirma.
Pedro Bingre diz que os próprios autarcas ficam reféns dos loteadores -
"se eles próprios não estiverem envolvidos nisso, já que também há
suspeitas de casos, como no Marco de Canaveses, de um autarca ter
comprado, reclassificado e loteado várias quintas". E havendo
expectativas de construção num determinado momento, entram em campo os
famosos direitos adquiridos, que justificam a polémica que há oito anos
anima o combate político no Porto, em relação às construções no Parque
da Cidade. "Os direitos adquiridos ao longo de várias gerações de
municipalismo "privado e criativo" criaram uma rede de compromissos
relativamente aos quais nenhum Governo teve a coragem de pôr cobro",
repara Mário Moutinho. Para Bingre, "as cidades são o rosto físico de
uma cultura" e o rosto urbano português foi vendido e dessacralizado.
Mais-valias urbanísticas devem ser retidas
Com maior ou menor intensidade nas vozes, é já um coro de urbanistas
aquele que tem vindo a defender como principal solução para o caos
urbanístico a retenção pública das mais-valias que são obtidas com as
operações urbanísticas. Pedro Bingre, investigador em planeamento
regional e urbano, é um dos que têm falado mais alto, e diz que o que
se passa no urbanismo em Portugal tem semelhanças com o mecanismo Ponzi
com que Madoff montou a maior fraude da história.
No caso português, refere, tem sido "o negócio chorudo de produção
administrativa e desregulada das malhas urbanas", através de alvarás de
loteamento. Dá um exemplo: um proprietário de um terreno agrícola seria
pago entre 10 mil a 20 mil euros por hectare. Mas um solo agrícola de
dez mil euros pode passar a valer cinco milhões, se tiver um alvará de
loteamento aprovado. Nenhuma indústria traz rendimentos tão elevados, e
o ciclo de baixa dos juros permitiu que as pessoas investissem no
imobiliário, não para habitar, mas para rentabilizar, especularam com
recurso ao endividamento. Até que a bolha estourou. Resultado: cidades
com casas a mais - só na cidade de Braga, há 15 mil casas novas para
venda, diz a oposição. "Instalou-se a indústria do alvará, e na faixa
de Setúbal a Viana do Castelo encontramos exemplos que caberiam no
caixote do lixo da história do urbanismo."
As pressões diminuiriam se houvesse a iniciativa de propor o fim da
apropriação privada das mais-valias resultantes de actos
administrativos relativos às questões do urbanismo e do território.
"Somos o único país europeu em que tal descalabro é a norma", refere
Mário Moutinho, reitor da Universidade Lusófona. E, como resultado,
contabiliza Pedro Bingre, a renda do loteador representa mais de dois
terços do preço final dos imóveis.
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