Público, 07.07.2009, João Mascarenhas Mateus, Coordenador técnico da candidatura da Baixa Pombalina a Património Mundial entre 2002 e 2006
O projecto de "requalificação" da Praça do Comércio que se encontra em discussão pública apresenta particularidades de método e de conteúdo sobre os quais importa reflectir.
A ideia de "requalificar", ou seja, de renovar uma praça que desde 1910
está classificada como monumento nacional constitui um erro de método.
Um monumento nacional não se renova. Um monumento nacional protege-se,
restaura-se, conserva--se na sua integridade física e simbólica.
Naturalmente que esta atitude prevista na lei deve acolher ocasiões
como as criadas pelas recentes obras de infra-estruturas do subsolo,
que implicaram o levantamento de grande parte da placa central, para
estudar e intervir de forma modelar. Uma oportunidade pois para
conhecer a imagem consolidada da praça que importa conservar e ao mesmo
tempo definir as condições técnicas especiais a exigir à intervenção de
reconstituição da unidade da sua imagem.
Como organismo de tutela, o Igespar deveria ter sido a primeira
instituição a elaborar este estudo e a dar a conhecê-lo publicamente
antes de qualquer proposta de intervenção. Um documento de base que
limitaria à partida arbitrariedades de método e de estética. Ter-se-ia
seguido a consulta e o concurso para o projecto de conservação.
Infelizmente, a posição do Igespar, longe de ser proactiva, tem sido
reactiva. Limita-se a reagir a uma única proposta de um único
arquitecto e à indignação de muitos cidadãos. Uma indignação que
possivelmente é extensível a muitos técnicos do Igespar que
regularmente não são solicitados ou não vêem nenhuma consequência
prática dos seus estudos.
No conteúdo da proposta em discussão está prevista na placa central uma
rede de losangos de pedra calcária que compartimentam alvéolos de brita
de lioz e resina. Uma imitação asseptizada e higienicista da antiga
terra batida que ali esteve durante séculos.
Se a premissa de restabelecimento do verdadeiro terreiro tivesse sido imposta previamente, não
estaríamos hoje a discutir losangos, ou porque não círculos, ou ainda
condicionamentos de fluxos, numa lógica ultrapassada de ordem e
limites. A Praça do Comércio sempre foi atravessada em todas as
direcções. Um espaço onde as pessoas se deveriam sentir livres de
qualquer "encarneiramento" imposto de forma mais ou menos subliminar.
Com esta solução impermeabiliza-se um dos corações de Lisboa e
retira-se aos lisboetas mais uma oportunidade de contacto directo com a
sua terra, num espaço que deveria ser de reencontro com a sua
verdadeira essência de cidade. O que diriam os franceses se lhes
impermeabilizassem a terra batida da Praça Bellecour em Lyon ou o
Jardim das Tuilleries, em Paris?
No perímetro, prevê-se ainda reconverter com um desenho "mikado" de
pedra vermelha e negra o aumento do lajedo na zona das arcadas para
receber mesas e bancos corridos de esplanadas. Uma solução que recorda
esteticamente o que se fez nos "paseos maritimos" de Espanha ou em
qualquer parque de exposições industriais, cujas lógicas têm fins bem
distintos.
Pergunto-me o que é que esta solução tem a ver com a pedra calcária que
caracteriza a praça que, se usada simplesmente como prolongamento dos
antigos lajedos, não introduzira obstáculos novos à leitura da sua
unidade. Artifícios como os propostos seriam quem sabe úteis para uma
delimitação de futuras concessões de esplanadas (sobre as quais nada é
revelado no projecto). E como tal têm sido abolidos em muitas praças um
pouco por toda a Europa. Veja-se a do Montecitorio em Roma, a da Unità
d'Italia em Trieste, a Praça do Palais Royal em Bruxelas, a de Reims, a
de São Marcos em Veneza. Com corredores para automóveis em granito, que
nunca fez parte da lista de materiais usados na Praça do Comércio,
consegue-se plasmar para sempre o trauma da invasão dos automóveis
iniciado em 1949 com a abertura da Avenida da Ribeira das Naus.
Agora que se prevê um condicionamento de tráfego, poderia ser a ocasião
ideal para eliminar a memória recente do asfalto, com calcário da
região para reconstituição das vias calcetadas perimetrais de que se
tem constância iconográfica.
À lista do muito que não é abertamente explicado à população junta-se o
projecto de iluminação ou o mobiliário urbano que se pretende
implantar. Componentes fundamentais para julgar da sua viabilidade e do
seu resultado final. A Praça do Comércio é muito mais do que uma praça
do Parque Expo ou das docas de Lisboa e, como tal, a reconversão do seu
valor patrimonial e cultural ao serviço de lógicas baseadas só na
animação comercial e social não deveria ser permitida por se tratar de
um monumento nacional.
Lisboa arrisca a desmonumentalização da Praça do Comércio, utilizando-a
como simples arranjo cenográfico ao serviço de uma lógica consumista de
bares, esplanadas e asseptização de espaços onde muito da identidade de
cidade está em risco de ser perdida. Da sua relação tradicional com o
rio, com a terra, com os materiais da região, com a luz, com a sua
história.
Desejava-se com a classificação de monumento nacional alargado à zona
da Baixa Pombalina a candidatar a Património Mundial, conseguir
garantir a aplicação integrada de uma metodologia história e crítica.
Não se sonhava que sobre um monumento nacional a passividade da tutela
fosse tão evidente na hora de a cobrir com uma manta e com retalhos
vários de métodos e de conteúdos.
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