Público, 05.07.2009, José António Cerejo
A Câmara de Póvoa de Lanhoso adjudicou em 2003, por unanimidade, a revisão do Plano Director Municipal (PDM) do concelho a uma empresa criada meses antes, para o efeito, por um dos seus chefes de divisão. A equipa contratada incluía mais três chefes de divisão e três técnicos do município. Todo o procedimento foi considerado ilegal pela tutela governamental das autarquias, em 2007, tendo sido ordenada a abertura de processos disciplinares contra os sete funcionários e participados ao Ministério Público (MP) os indícios criminais contra o então presidente da câmara e o chefe de divisão/empresário. Os processos disciplinares nunca foram instaurados e o inquérito criminal foi arquivado.
Constatada a necessidade de rever o PDM, a câmara então presidida por
João Tinoco de Faria (PS) decidiu, no final de 2002, convidar três
empresas a apresentar propostas com base num caderno de encargos
elaborado pelo chefe da Divisão de Licenciamento de Obras Particulares,
arquitecto José Vilas Boas. Apesar de a estimativa do custo do serviço
ultrapassar largamente o valor máximo permitido para ajustes directos
com consulta a várias empresas, Tinoco de Faria, conhecido advogado de
Braga, disse à Inspecção-Geral da Administração Local (IGAL) que já não
se recordava das razões que levaram o município a optar por aquele
procedimento em vez de lançar um concurso público. Esquecido disse-se
também do motivo pelo qual foram consultadas aquelas empresas e não
outras.
Feita a consulta, ao arrepio - segundo a IGAL - de toda a espécie de
formalidades legais exigíveis, o negócio foi entregue pela câmara, em
Janeiro de 2003, à firma Planurae, por 144.651 euros. Conforme a
documentação do processo, um dos seus três sócios era José Vilas Boas,
sendo um dos outros o engenheiro José Bezerra, chefe da Divisão de
Planeamento da vizinha Câmara de Vila Verde.
A sustentar a decisão dos vereadores do PS e do PSD, únicos partidos
representados no executivo, havia apenas um parecer de uma consultora
jurídica. Não foi sequer nomeada a comissão da análise de propostas,
que, nos termos da lei, teria de propor e fundamentar a adjudicação.
De acordo com aquele parecer, não haveria qualquer incompatibilidade no
facto de a adjudicação ser feita à empresa de um funcionário da câmara,
antes pelo contrário, haveria até uma "inequívoca mais-valia" para o
município. Isto porque, como disse Tinoco de Faria à IGAL, a presença
desse técnico na equipa, bem como o facto de ter recrutado seis dos
seus colegas para fazer o trabalho, garantia que o PDM seria feito "por
gente que conhece o concelho". O então autarca adiantou que, por isso,
tinha autorizado Vilas Boas e os outros funcionários a integrar a
equipa da Planurae, na condição de o fazerem fora das horas de serviço.
Adjudicação "inválida"
Só que a IGAL considerou a adjudicação "inválida", por não ter sido
precedida de concurso público, e que a pertença de funcionários do
município na empresa e na equipa com que concorreu violava a legislação
sobre incompatibilidades, impedimentos e conflitos de interesses.
Entendeu ainda haver indícios da prática dos crimes de "tráfico de
influências", por parte de José Vilas Boas, e de "prevaricação", por
Tinoco de Faria. Em consequência, propôs a participação ao tribunal,
para declaração de nulidade, dos factos referentes à adjudicação, assim
como a instauração de processos disciplinares aos funcionários
envolvidos. Quanto à matéria criminal, propôs a sua remessa ao
Ministério Público, sendo estas propostas homologadas no Verão de 2007
pelo secretário de Estado da Administração Local, Eduardo Cabrita.
A ilegalidade da adjudicação foi entretanto resolvida, uma vez que o
executivo eleito em 2005 e liderado pelo PSD revogou a deliberação que
tinha entregue o negócio à Planurae - lançando depois um concurso
público que já levou à adjudicação da revisão do PDM a outra empresa.
Quanto aos 30 mil euros que a Planurae havia recebido aquando da
intervenção da IGAL, a câmara entendeu que esse valor correspondia a
trabalhos efectivamente feitos, cabendo ao Tribunal de Contas avaliar a
legalidade desses pagamentos.
No que toca aos processos disciplinares, o gabinete do actual
presidente da câmara, Manuel Batista, disse ao PÚBLICO que o executivo
deliberou em Julho de 2007, por unanimidade, "instaurar um processo de
averiguações que se encontra pendente de parecer da Comissão de
Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte entretanto solicitado".
Segundo Tinoco de Faria, o inquérito judicial aos indícios criminais foi arquivado pouco depois de iniciado
"Perplexa" foi como se declarou a consultora da IGAL que subscreveu o
parecer jurídico relativo ao relatório dos inspectores. A IGAL contesta
a legalidade da "constituição de uma sociedade por um funcionário
municipal a exercer funções dirigentes (chefe da Divisão de
Licenciamento de Obras Particulares), com o confessado fim de concorrer
a um procedimento de contratação que sabia que iria ser lançado pelo
município no qual exercia funções, bem como a participação, como
elementos integrantes da equipa, de funcionários a exercerem funções no
município" em áreas de "conexão estreita" com a revisão do PDM.
A A factualidade apurada "revela-se apta a preencher o tipo objectivo
do crime de tráfico de influências", diz o parecer jurídico da
Inspecção-Geral da Administração Local (IGAL) onde se propõe a
participação ao tribunal da actuação do arquitecto que é sócio da
empresa à qual foi adjudicada a revisão do PDM. Para fundamentar essa
conclusão, é apontada a existência de indícios de um "eventual acordo"
entre o funcionário e a empresa "no sentido de negociar a sua
influência sobre os órgãos autárquicos para deles vir a obter uma
decisão ilegal que fosse favorável aos interesses daquela".
O "abuso de influência" teria sido exercido sobre o presidente da
câmara, em relação ao qual o arquitecto "gozava de uma particular
legitimação e superioridade (...) nas questões do planeamento
urbanístico", e visava "a obtenção de uma decisão ilícita", que se veio
a verificar e consistiu na adjudicação do serviço à sua empresa. Além
disso, diz o documento, "há indícios" de que José Vilas Boas "não
desconheceria que a decisão pretendida seria tomada em violação das
regras sobre conflito de interesses, ao adjudicar um contrato de
prestação de serviços a uma empresa da qual ele era sócio".
Quanto ao então presidente da câmara, um outro parecer jurídico da IGAL
salienta que Tinoco de Faria "não só conhecia a situação como terá,
verbalmente, autorizado vários funcionários a acumularem o exercício de
funções públicas com a actividade privada, não podendo desconhecer que
tal não era a forma prevista na lei para a referida autorização". O
documento acrescenta que "o antigo autarca não podia ignorar que a
'autorização' verbal que estava a conceder aos funcionários do
município resultaria na prática de actos contrários à lei, constituindo
infracção disciplinar e mesmo criminal" e que "a sua conduta iria
beneficiar" os funcionários recrutados por Vilas Boas para integrar a
equipa da revisão do PDM. Esta conduta, conclui o parecer, "pode
configurar a prática de um crime de prevaricação".
Tinoco de Faria disse ao PÚBLICO que este entendimento era "um
verdadeiro absurdo", razão pela qual "o Ministério Público arquivou em
duas penadas" o inquérito aberto em 2007. "Admito que pudesse ter
havido alguma irregularidade na adjudicação, mas para haver
prevaricação era preciso haver prejuízo para a câmara e enriquecimento
para alguém e não houve", defendeu.
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