in Público, 24.05.2009, Alexandra Prado Coelho
Criar hotéis mesmo que em áreas devolutas anexas ao Convento de Cristo, em Tomar, ou ao Mosteiro de Alcobaça, ambos monumentos classificados pela UNESCO como Património da Humanidade "é absolutamente inaceitável", indigna-se o arquitecto Walter Rossa, especialista em história da arquitectura e urbanismo. "Há edifícios que são símbolos nacionais e que o Estado tem que manter como símbolo. Imagine que um grupo rock queria comprar os direitos sobre o hino nacional para fazer uma versão diferente e rentabilizá-lo. Não vamos rentabilizar o hino nem a bandeira, também não vamos rentabilizar o Convento de Cristo."
Elísio Summavielle, director do Instituto de Gestão do Património
Arquitectónico e Arqueológico (Igespar) descreve o antigo hospital
militar junto ao Convento de Cristo e o asilo ligado ao Mosteiro de
Alcobaça como "espaços expectantes e não abertos ao público por não
terem interesse arquitectónico que justifique a visita". Além disso,
lembra, "já sofreram alterações à traça original". Porque é
absolutamente necessária a preservação dos edifícios, "está a ser
estudada uma reutilização, e a hotelaria é uma de várias hipóteses".
Mas sublinha: "Um monumento nacional não pode nunca ser alienado, pode
apenas ser concessionado." E cita bons exemplos (embora não sejam
Património da Humanidade) como o Hotel do Bussaco ou o Tivoli Palácio
de Seteais, que acaba de ser inteiramente restaurado pela cadeia que o
explora.
Tomar e Alcobaça são dois casos diferentes, na perspectiva de Paulo
Pereira, antigo vice-director do Ippar (Instituto do Património
Arquitectónico). No caso de Alcobaça, o antigo asilo é um espaço que
"tem possibilidades de ser reutilizado e adaptado a diversas funções",
embora "seja excessivamente grande para ser musealizável".
Já no caso do antigo hospital militar anexo ao Convento de Cristo,
Paulo Pereira discorda absolutamente da sua reutilização. "Não tem
condições. Teria que ser muito adaptado. A haver reutilização, devia
ser apenas para áreas de serviço de apoio à vida do monumento."
Mas a dúvida sobre a reutilização ou a mudança de uso não se coloca só
com o património da UNESCO. O exemplo do Tribunal da Boa-Hora, em
Lisboa, mostra como o valor de um edifício é muito mais do que o seu
valor arquitectónico - é a "memória que está agarrada às paredes", na
expressão de Paulo Pereira.
O problema é que nem sempre é fácil transformá-los em museus e, no caso
da Boa-Hora, é um edifício que "não funciona bem como tribunal" e por
isso "não tem que estar permanentemente ligado a uma função judicial".
Para se musealizar um local como este é desejável que as suas
qualidades físicas permitam a evocação do seu valor simbólico. E isso
pode ser difícil. Outro exemplo é o das instalações da PIDE, na Rua
António Maria Cardoso, em Lisboa, hoje transformadas em condomínio de
luxo. "O que é que se faz?", pergunta Paulo Pereira. "Se ficasse como
museu, seriam apenas umas salas. Não existe ali a expressão física da
sua função antiga e, em casos assim, não se consegue dar ao edifício um
valor pedagógico e didáctico."
Se calhar, no caso da polícia política do Estado Novo, "a memória preserva-se melhor de outra forma e noutro lugar", diz.
Mas para quem foi vítima da PIDE ou quem recorda momentos históricos na
Boa-Hora isso não é fácil de aceitar, compreende Paulo Pereira. "No
património há sempre um jogo de equilíbrio frágil entre a memória
colectiva e a realidade física."
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