in Público, 24.05.2009, Alexandra Prado Coelho
A pergunta do título é, obviamente, uma provocação. Mas é também um ponto de partida para um debate sobre aquilo que alguns vêem como uma óptima solução para reabilitar património e outros encaram como uma nova obsessão nacional: a criação de hotéis de charme em monumentos ou imóveis com valor patrimonial.
"De repente, entrou na moda, tudo é para um hotel de charme", diz a
historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, que vê nisto uma "falta
de imaginação". Basta uma breve passagem por algumas notícias recentes:
levanta-se a hipótese (entretanto abandonada) de criar um hotel de
charme no Tribunal da Boa-Hora, na Baixa lisboeta; discute-se um hotel
de charme no Terreiro do Paço; fala-se da possibilidade de ocupar as
áreas devolutas do Mosteiro de Alcobaça, monumento património da
Humanidade, com um hotel de charme ou de luxo; no ano passado, a Enatur
voltou a admitir a ideia de fazer uma pousada no Forte de Peniche; no
antigo Hospital de São Teotónio, em Viseu, o Grupo Pestana abre uma
pousada com spa; o mesmo grupo vence o concurso público para a
exploração turística da Cidadela de Cascais e prepara-se para abrir
outra pousada no Palácio do Freixo (monumento nacional) no Porto; a
Câmara de Lisboa anuncia que vai colocar à venda seis palácios
centenários para serem convertidos em hotel numa operação baptizada
como Lisboa, Capital do Charme. Será que aguentamos tanto charme?
"O princípio existe em todo o mundo. E em Portugal, se olharmos para o
passado, todos conhecemos vários casos em que isso nunca foi polémico",
diz a secretária de Estado da Cultura, Paula Fernandes dos Santos. "Em
alguns monumentos, temos que ter o cuidado de não misturar o lado
nobre, patrimonial, com outros lados que, se calhar, no passado, não
tiveram as utilizações mais nobres. Mas como princípio acho que não
devemos ficar assustados com a ideia. São formas de preservar o
património. Se não lhe dermos uma finalidade ninguém acha que aquilo é
útil e ninguém vai lá investir. Não se pode é dizer 'que horror, não
podemos pôr lá nada', porque corremos o risco de deixar cair as
paredes".
Manuel Salgado, vereador do Urbanismo de Lisboa, explica a estratégia
para a capital. "Lisboa tem um conjunto significativo de edifícios com
valor patrimonial que estão em mau estado ou subaproveitados e têm
custos de manutenção. Por outro lado, segundo os estudos feitos pela
Associação de Turismo de Lisboa, há uma procura crescente de um turismo
urbano, voltado para pequenas unidades hoteleiras em zonas históricas.
É uma área de negócio interessante." "Mas", sublinha, "não é a única
via possível. Pode haver empresas de prestígio que queiram adquirir e
recuperar um imóvel para uma sede representativa, pode haver pessoas
ricas que queiram comprar, pode haver fundações". Seja como for, é uma
forma de a câmara equilibrar as finanças (a soma do valor-base de venda
dos seis palácios era 12,7 milhões de euros) e recuperar património.
Tudo para o turismo
Para já, a CML vendeu o Palácio Braamcamp (avaliado em 1,8 milhões, foi
comprado por 2,4 milhões), em Santa Catarina, um edifício que chegou a
ser ocupado por Fontes Pereira de Melo, serviu depois para a École
Française de Lisbonne e, por fim, até 2008, albergou a Caixa de
Previdência e os Serviços Sociais da CML. A oposição social-democrata
travou a venda dos outros palácios por enquanto (Salgado diz que, de
qualquer maneira, a ideia foi sempre a de vender um de cada vez).
Victor Gonçalves, presidente da Comissão de Urbanismo da Assembleia
Municipal, justifica: "Atendendo à actual crise e à diminuição da
procura hoteleira, pareceu-nos precipitado." Não se trata de nenhuma
posição de princípio contra a exploração para hotéis de charme. "A
única coisa que Lisboa pode precisar, do ponto de vista hoteleiro, é de
hotéis de charme. Em relação à restante hotelaria, o que existe e o que
já está aprovado é suficiente."
O que preocupa Raquel Henriques da Silva é precisamente esta
concentração de esforços no turismo. "Escusamos de repetir o erro de
outras cidades de entregar os centros históricos exclusivamente a
turistas. Tenho pena de que não haja uma reflexão mais profunda sobre
esse modelo. As empresas, os bancos, o Governo, as universidades, todos
vão para os arredores e devíamos pensar se isso tem que ser uma
fatalidade."
Em geral, "ou se faz hotel ou se faz museu, e isso é pobre. O desígnio
para Lisboa não pode ser só alojar turistas, ter restaurantes para
turistas, centros de interpretação para turistas...".
"Faça-se o novo ao lado"
Um dos argumentos contra a hipótese de venda de edifícios históricos é
a de que o Estado está a perder património deixando-o privatizar-se.
"Há sempre maneira de alugar a projectos mais interessantes. Vender tem
que ser o último recurso", defende Paulo Ferrero, do Fórum Cidadania
LX. Dito isto, esclarece que também não tem nenhuma objecção de
princípio a hotéis de charme. "Cada caso é um caso. Fazer a mesma
alteração de uso para todos é que me parece esquisito."
É muito importante, no caso dos monumentos, que as pessoas possam
continuar a visitá-los, defende Walter Rossa, especialista em
Arquitectura e Urbanismo. Um bom exemplo é o da Pousada da Flor da
Rosa, no Crato, onde a intervenção do arquitecto Carrilho da Graça
separa a zona do hotel, permitindo que se continue a visitar o
convento. "Isso pode ser uma boa solução", concorda José Aguiar,
responsável da Comissão Nacional Portuguesa do Conselho Internacional
dos Monumentos e Sítios (ICOMOS). "Faça-se o novo ao lado e não se
altere de maneira definitiva o monumento. É muito importante garantir a
reversibilidade da intervenção."
Um hotel de charme "não pode ser transformado numa receita, como foram
as pousadas", defende Paulo Pereira, antigo vice-director do Instituto
Português do Património Arquitectónico. "Não é a solução para todos os
problemas". No entanto, admite que, "com o projecto adequado, pode
ajudar a nobilitar edifícios abandonados e que não têm destino".
A questão que preocupa muita gente é precisamente a de saber que tipo
de intervenção os edifícios poderão sofrer. "Este é um mercado com
algum nível de exigência. Os utilizadores querem equipamentos amplos e
isso é geralmente incompatível com as preexistências", alerta José
Aguiar. "É preciso adequar o programa ao objecto e não o contrário. Não
podemos obrigar o monumento a resolver as circunstâncias funcionais dos
programas que, sendo turísticos, são muito exigentes, implicam zonas de
lavagens, de preparação de refeições, spas". Dá um exemplo: "Um
mosteiro de uma ordem pobre tem celas muito pequenas e a adaptação a
quartos é muitas vezes desastrosa".
Os estudos de viabilidade são essenciais, concorda Walter Rossa. Mas
"não são uma solução universal", até porque "há edifícios que, enquanto
ruínas, merecem poder continuar a sê-lo". Ou seja, "não faz sentido
aproveitar a fachada de um palácio que caiu e fazer-lhe um hotel por
trás". José Aguiar está inteiramente de acordo na crítica ao
"fachadismo". "Por vezes, há intervenções que preservam a pele e
arrasam o interior, deixando algo que não é novo nem antigo, não
preserva a memória nem os valores formais que definiam o edifício como
monumento. Aí, em termos de património, estamos perante uma fraude. Não
é conservação, mas ao mesmo tempo não dá espaço à arquitectura
contemporânea e não permite que o nosso tempo tenha um rosto."
Um mercado com potencial... mas não agora
O mercado dos hotéis de charme em Lisboa tem potencial para crescer,
mas dificilmente isto acontecerá neste momento de crise. Esta é a
convicção de Luís Alves de Sousa, dos Hotéis Heritage, que conhece bem
esse segmento de mercado pela experiência dos cinco hotéis desse tipo
que tem em Lisboa, nomeadamente o Solar do Castelo, instalado numa
mansão do século XVIII dentro das muralhas do Castelo de São Jorge.
Olhando para os cinco imóveis históricos que a Câmara de Lisboa
pretende vender, Alves de Sousa avisa que não basta um palacete para
fazer um hotel de charme. "Há palácios fantásticos mas em sítios onde
não faz sentido nenhum ter um hotel de charme." Da lista da câmara, um
exemplo disso é o Palácio Benagazil, junto ao aeroporto, ou ainda o
Pancas Palha, em Santa Apolónia, que "está em cima da estrada, numa
zona com barulho, pouco central". Não se consegue "vender um produto
bom mas que está fora do sítio", diz.
Quanto ao Tribunal da Boa Hora, apesar de achar que "toda a Baixa é
interessante", tem algumas dúvidas sobre o sucesso da ideia (já
abandonada) de transformar em hotel um edifício que, apesar de "ter
boas condições para ser adaptado, está encaixado num sítio um pouco
sombrio". Não é a melhor localização, sobretudo tendo em conta outros
locais que existem em Lisboa - "o Quartel do Carmo, por exemplo, que
está num sítio magnífico". Depois há o problema do tamanho. "Explorar
um hotel com menos de vinte quartos é muito difícil." Este é um tipo de
negócio que, acredita Alves de Sousa, pode interessar mais a pequenas
empresas familiares do que a grandes grupos hoteleiros.
Mas, por outro lado, esse pequenos negócios de exploração familiar "não
conseguem ter visibilidade internacional e fazer a promoção, que é
também a promoção da cidade", lembra Alves de Sousa. O essencial,
contudo, é que a câmara aposte na recuperação (limpeza, obras nos
edifícios degradados), sobretudo entre Santa Apolónia e a Av. de 24 de
Julho, e até ao Parque Eduardo VII. "Só assim teremos condições para
chamar mais turismo". Porque Lisboa "tem um charme natural, mas tem
problemas que ainda afastam os turistas". É uma cidade que "tem que ser
mais valorizada em termos internacionais, tem subir de categoria".
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