in Público, 18.05.2009, Nuno Portas, Arquitecto
O documentário da autoria de João Dias que inesperadamente se exibe em sala como um filme de enredo merece, por razões várias, que seja visitado por quem viveu de perto os primeiros anos da "revolução dos cravos" e por quem o não pôde fazer por razões de idade ou de ausência. Interessa por certo aos arquitectos - que têm na narrativa do filme um evidente protagonismo -, mas é igualmente interessante para os que, não o sendo, se preocupam com as políticas sociais e, em especial, pelas questões da habitação dos que têm mais dificuldades de acesso e vivem em condições mais precárias.
O polémico programa que ficou conhecido pela sigla SAAL1 foi apenas um
dos que, nos primeiros governos provisórios e ainda nesse ano de
grandes mudanças, se criaram com o objectivo de acelerar e corrigir a
herança do Estado Velho, neste como noutros campos do atraso do país.
A originalidade deste documentário - que não é uma montagem de imagens
de arquivo nem sequer um catálogo de obras de arquitectura - está nas
falas dos actores, populações e técnicos, sobre o que então se chamava
"o processo": as cumplicidades e também os equívocos entre uns e
outros, mostrando diferentes caminhos para chegarem às novas casas que,
por uma vez, sentiam que também estavam nas suas mãos e não só dos
órgãos do Estado.
Mais do que um processo de participação ocasional, o que os novos
poderes ofereciam aos interessados era a oportunidade de gerirem de
forma organizada (e assistida por técnicos qualificados) a construção
de cada novo bairro que iria substituir os "bairros de lata", as
"ilhas" ou outras formas de precariedade em que estavam a viver.
Registando dezenas de horas de testemunhos vivos sobre as esperanças,
as dúvidas, as dificuldades de se entenderem, moradores e técnicos, o
filme (de mais de uma hora) reconstitui esse processo a partir de
memórias de uns e outros e é isso que faz dele mais do que uma
reportagem ou um documentário factual retrospectivo.
É justo lembrar que esta experiência social já tinha um registo
antecedente, também cinematográfico, que se deve a Cunha Telles - Os
Índios da Meia-Praia -, filmado na própria altura dos acontecimentos,
no Algarve. A complementaridade destas duas realizações, separadas por
duas ou três dezenas de anos, é surpreendente e ajuda a entender as
virtualidades e limitações da "participação construtiva" de que o
processo SAAL foi, reconhecidamente, uma experiência pioneira neste
campo das políticas públicas na Europa. Em paralelo com outras formas
de empowerment que se desenvolveram nos continentes de maiores
migrações internas e desigualdades sociais.
O programa SAAL não pretendia ser o programa único para os novos
tempos. Mas era o mais experimental de entre os que se lançaram nos
meses seguintes: a reabilitação de bairros populares antigos (caso do
Barredo Ribeira), as cooperativas de Habilitação Económica (CHES) ou os
Contratos de Desenvolvimento (CDH) para custos controlados com a
promoção privada que ameaçava uma crise profunda... Ao SAAL cabia,
basicamente, a auto-organização e a experiência do diálogo com os
projectistas que devia pôr em prova tipos de casa e de bairros menores
(embora mais numerosos) e mais adaptados aos locais. Ou seja, distintos
dos antecedentes Planos Integrados, de nome aliás infeliz, já que de
integrados tinham pouco. O último dos quais, o PI de Setúbal da
Bela-Vista, agora de novo falado em boa parte por essa falha, tal como
acontecera por exemplo em Chelas, Almada ou Aleixo, todos eles com
pressupostos urbanísticos e efeitos de massificação e monoclassismo
excessivos. Além da difícil apropriação pelos destinatários, com
reflexo na própria manutenção - problemas que em 74 já eram visíveis,
cá e lá fora.
Ao contrário, como propunha o diploma fundador do SAAL, a proximidade,
a reduzida dimensão, a ligação directa ao espaço público, a tipologia
das casas, deviam ser discutidas e adoptadas, além da opção (não
obrigação) pela autoconstrução parcial apoiada. Estes critérios,
pensávamos, poderiam reduzir os riscos que os grandes bairros de blocos
de grande altura não conseguiam evitar.
Esta discussão passa no filme, que não esconde as diferentes versões
regionais e políticas dos técnicos e moradores, acabando por tornar-se
o leit-motiv dos depoimentos e o material mais rico do filme e
ganhando, surpreendentemente, uma actualidade que não fora calculada
quando das filmagens e da montagem.
Uma nota a propósito da controvérsia publicada no PÚBLICO (ípsilon)
acerca da recente "ocupação" da última fase do Bairro da Bouça (na
Boavista portuense) por moradores de maiores posses e cuja inauguração
o filme retrata na sua ponta final, talvez com algum excesso de duração.
Compreendo, por um lado, a posição do projectista (Siza), que queria
ver completado o seu projecto de conjunto e não vê um problema na
inesperada mistura sociocultural (a cidade afinal está sempre em
mudanças... não previstas), como também compreendo a crítica do
ex-responsável do SAAL-Porto, que se interroga sobre a legitimidade
dessa mudança, que poderia ter excluído famílias da associação que, com
a interrupção do projecto, teriam direito à preferência se porventura
quisessem juntar-se às primeiras... O que parece não ter acontecido, a
avaliar pela reportagem do PÚBLICO.
Aqui pode ter havido uma falta de explicação de um responsável
associativo sobre o que entretanto se passou com moradores do bairro e
com os que não couberam na fase inicial. Coisas como estas terão
acontecido noutras realizações do programa.
Além de que este caso da Bouça teve uma singularidade - a de que o
projecto já estava concluído antes do 25 de Abril, escapando às
discussões com os moradores que viriam a caracterizar o modo de fazer
do Programa SAAL. Faltando-lhe esse "sal"...
Se o João Dias e a sua equipa tivessem podido chegar à "longa-metragem"
teriam certamente incluído estas e outras histórias que ficaram por
contar. Aliás, como observador, senti a falta de alguns exemplos
particularmente instrutivos do ponto de vista da gestão dos moradores,
como, entre outros, o das Antas no Porto ou o da Curraleira em Lisboa.
Ficarão para um Director's Cut!
Aliás, também a crise actual e generalizada dos bairros sociais da
segunda metade do século passado a que se assiste por esse mundo
poderá, quem sabe, ressuscitar naturalmente sob outras formas.
Experiências de "participação construtiva" e de "urbanismo de
proximidade" como a do SAAL que, graças aos cravos, ficou como uma
referência na história da nossa democracia.
Pelo menos dá que pensar - como este filme, a não perder.
Declaração de interesses: o autor deste artigo teve oportunidade de
lançar no Verão de 74 o programa SAAL na qualidade de secretário de
Estado do II Governo Provisório e de seguir o "processo" até Março de
75. E não está arrependido de o ter feito. Só tem que lamentar não ter
podido defendê-lo até à fase de maturidade, isto é, junto dos
municípios eleitos, como desde o início se previu.
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