in Público, 15.05.2009, José Miguel Júdice, Advogado
Aapresentação pública do projecto do Terreiro do Paço é um momento simbólico importante. Hesitei sobre se deveria participar no debate. Tenho a maior consideração, respeito e estima pelo arq. João Biencard Cruz, que me sucedeu na Frente Tejo e que convidara para meu braço-direito; fui eu quem tomou a decisão de pedir ao arq. Bruno Soares - um grande arquitecto e uma pessoa de bem, como Biencard - para continuar o trabalho que estava já a fazer na área. Mas, tudo ponderado, acho que devo falar.
O objectivo que definira era que se fizesse um restauro da praça, tendo
presente que ela é simultaneamente uma praça real setecentista e um
espaço da sociedade burguesa que se lhe seguiu. O caderno de encargos
para o projectista era conciliar o aparato com o conforto, mantendo a
majestade da função inicial com os usos para os cidadãos e os turistas
que a adaptassem à realidade do século XXI.
Os constrangimentos de tempo impostos pelas comemorações do Centenário
da República, a necessidade de que não fosse ultrapassado o orçamento e
o facto de a criatividade contemporânea não ser manifestamente
essencial, levou-me a defender a adjudicação directa, ao contrário de
todos os outros projectos da Frente Tejo, que seriam feitos por
concurso público internacional.
Essa opção de adjudicação directa ia com as seguintes condições: (i) um
grupo multidisciplinar de especialistas nacionais e estrangeiros seria
ouvido e acompanharia o trabalho de Bruno Soares, (ii) a sociedade
Frente Tejo interviria em diálogo permanente no processo de reflexão e
criação do arquitecto, aprovando o anteprojecto; (iii) o debate público
seria aberto a seguir; (iv) a sociedade Frente Tejo aprovaria o
projecto, após tal debate, com as alterações que se justificassem.
Quando convidei Bruno Soares disse-lhe de forma clara que discordaria
totalmente de qualquer projecto que optasse por desrespeitar o conteúdo
ideológico e patrimonial da praça; designadamente, desejava que o
projecto fosse de restauro quando possível e que o arquitecto se
"apagasse" perante o património histórico-cultural existente, revelando
a "modéstia" que realidades históricas deste valor exigem a quem delas
se ocupa.
Sinto, por isso, que tenho o dever de afirmar que o anteprojecto divulgado nunca teria sido aprovado por mim para submissão a
discussão pública. Não acredito, aliás, que os especialistas que
começara a consultar concordassem com a opção. Em primeiro lugar, o
projecto afecta parte do núcleo essencial da praça. Refiro-me ao Cais
das Colunas, que foi vítima do projecto do túnel do metropolitano, mas
que não deveria ser alterado na sua imagem e presença. O Cais das
Colunas é uma peça do século XVIII e faz parte da nossa memória
colectiva. Era por ali a entrada solene em Lisboa durante séculos e até
aos aviões. Não pode por isso ser alterado com a contemporânea criação
de um círculo pelo terreiro a dentro. O tema chegou aliás a ser falado
(alguém chegou a propor-me que fosse alargada por aterro a praça do
lado do rio para facilitar o trânsito!) e fui sempre muito claro quanto
a isso: a proporção da praça e os seus elementos definidores não podiam
ser alterados.
Em segundo lugar, discordaria completamente da solução acrónica dos
traçados em losangos, parece que inspirados em cartas de marear, que
destroem o equilíbrio da praça, trazendo-a para um registo cultural
inadequado. A praça era um terreiro e como tal deverá manter-se a
grande parte central, evidentemente com a utilização de materiais
modernos que graficamente exprimam essa realidade histórica, como está
aliás proposto e mereceria a minha concordância.
Em terceiro lugar, opor-me-ia a que esses losangos sejam marcados com
pedra lioz que ressalta cromaticamente do terreiro e lhe dá um
movimento que seria noutro espaço sem esta carga cultural provavelmente
uma excelente solução, mas aqui é como "pôr-se em bicos de pés" sobre a
imensa dignidade dos quatro hectares da praça. O Barroco é um tempo de
movimento, o Terreiro do Paço bem o exemplifica com a ondulação do Cais
das Colunas, com as suas fachadas e com os efeitos da luz sobre elas,
mas nem todo o movimento é barroco. A estrutura quadricular da praça e
dos edifícios, a simetria e o eixo da Rua Augusta estendendo-se
visualmente pelo estuário, servem o projecto ideológico do iluminismo.
Aqui são desrespeitados em absoluto pelos traçados que sem coerência
lhe pretendem acrescentar no século XXI.
Em quarto lugar, recusaria o traçado marcado no terreiro que pretende
prolongar a Rua Augusta até ao rio, fazendo intervir um projecto de
espaço público moderno e também acrónico em relação à majestade e à
proporção existente; e isso com a agravante de que destrói a coerência
entre as zonas de conforto e de passeio das arcadas e a zona de aparato
da parte central, sem utilidade, e ainda mais sem necessidade, também
assim contribuindo para uma cacofonia visual e policromática que é o
contrário da modéstia com que se devia enfrentar o expoente de
património edificado e ideológico que ali temos.
Dito isto, em relação ao que na Internet pude ver, o resto do
anteprojecto parece-me corresponder integralmente a um programa
coerente e adequado às funcionalidades de trânsito e de peões, há muito
esperado. Reconheço que as características pessoais de Biencard Cruz e
de Bruno Soares favorecem que o debate público seja por eles escutado e
que soluções apresentadas sejam revistas. Mas se já era difícil cumprir
calendário sem pagar preços exorbitantes nas empreitadas se me tivessem
deixado trabalhar, depois do tempo perdido tudo se complicou mais. E as
eleições autárquicas do Outono serão também um factor de grande pressão.
Por isso apelo para que o calendário político não obrigue a erros que
serão depois na prática irreparáveis. O Marquês de Pombal fez obra, não
sem antes os seus arquitectos estudarem, ponderarem, apresentarem
alternativas, discutirem e com isso criou uma das melhores obras
urbanas da Europa setecentista. Não queiramos ganhar-lhe em velocidade, já que dificilmente o venceríamos em qualidade.
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