in Público, 27.04.2009, Carlos Dias
Completados em Março sete anos após o encerramento das comportas da barragem de Alqueva, nas aldeias alentejanas ribeirinhas da Estrela e da Luz a desertificação humana avoluma o número de casas vazias e a população activa entra nas malhas da emigração, desiludida com as promessas de desenvolvimento garantidas anos a fio pelas autoridades nacionais, regionais e locais.
Em vez do anunciado progresso sob a forma de grandes projectos
turísticos que prometiam levar à pequena aldeia o bem-estar na forma de
emprego seguro em lugar do incerto e duro trabalho sazonal na
agricultura, o mais que conseguiram foi um cais para os barcos
atracarem junto ao esgoto que lança sem tratamento, na albufeira de
Alqueva, os efluentes domésticos produzidos na comunidade. Quem sai das
embarcações que chegam é imediatamente confrontado pelo cheiro intenso
do esgoto. "No Verão é muito pior com as moscas e os mosquitos", lamenta-se Rui
Almeida, presidente da Junta de Póvoa de São Miguel. Os efluentes
produzidos na aldeia da Estrela eram lançados, antes da construção da
barragem do Alqueva, em quatro fossas sépticas. Com a subida das águas
da albufeira ficaram submersas, e até hoje o sistema não foi reposto,
responsabilidade que imputa à Empresa de Desenvolvimento e
Infra-estruturas do Alqueva (EDIA), mas esta alega que a solução "passa
pelo plano de pormenor", processo que está a ser liderado pela Câmara
de Moura. O tratamento dos efluentes domésticos foi assumido pela autarquia, que
se comprometeu a solucionar o problema "nos próximos dias", disse ao
PÚBLICO o presidente da câmara, José Maria Pós-de-Mina, mas sem deixar
de realçar que esta decisão "não corresponde ao que foi acordado" entre
as duas entidades, isto é, a responsabilidade era da EDIA, que a passou
à autarquia. O plano, refere o autarca, continua "em fase de
elaboração", na câmara, há pelo menos oito anos. Sem este documento não
se pode fazer o que quer que seja na aldeia. Esquecidas as promessas anunciadas por autoridades locais, regionais e
nacionais, a Estrela apresenta-se hoje como uma aldeia-fantasma.
"Vende-se", lê-se nas frontarias das casas, a confirmar o estado de
abandono a que chegou o pequeno aglomerado populacional, onde reside
uma comunidade de idosos, rodeada de água por todos os lados menos por
um. Um dos moradores, de 82 anos, insurge-se contra a EDIA, "que prometeu muita coisa". "E agora arrimou-nos à parede." Recorda que na escola da aldeia chegaram a estar "mais
de 40 moços". Os poucos que restavam "já partiram", queixa-se. Outra das dores colectivas está expressa na igreja da aldeia que a EDIA
se comprometeu a recuperar. Josefa Estevão, representante da comissão
fabriqueira, insurge-se contra o estado "deplorável" das coisas. Depois
de terem recuperado o exterior e o telhado, "deixaram o interior sujo e
com obras por acabar", obrigando os paroquianos a celebrar o culto num
pequeno edifício. A talha que adorna o altar está a apodrecer e as
figuras estão guardadas à espera de melhores dias. "Está assim desde
2005", observa Josefa Estevão. Rui Almeida foca ainda outra situação insólita. A subida das águas de
Alqueva obrigou à desactivação do cemitério da aldeia da Estrela e à
construção de um novo. Seguindo a tradição, os corpos não descem à
terra, são depositados em ocos (caixas construídas em cimento). Como a
região está sujeita a grandes amplitudes térmicas, "as paredes dos ocos
abrem fendas", libertando, por vezes, gases da decomposição aeróbica
dos corpos. A EDIA, que construiu o cemitério, diz que o facto "nunca
foi reportado" pela junta de freguesia, "desconhecendo-se em absoluto a
sua existência".
Aldeia da Luz perdeu 50 habitantes
Construir uma nova Aldeia da Luz para alojar os cerca de 400 habitantes
que foram deslocados, em 2003, do aglomerado submerso pelas águas de
Alqueva obrigou a um investimento de 50 milhões de euros.
Tida como aldeia-modelo com equipamentos colectivos de que muitas
cidades de Portugal não dispunham, com o decorrer dos anos o novo
aglomerado não conseguiu atrair novos moradores, nem ter um aumento
demográfico. Francisco Oliveira, autarca local, diz que, pelas suas
contas, quase 50 moradores já deixaram a terra, "fora os que já
morreram", acrescenta. O decréscimo populacional acabou por se reflectir na escola da aldeia,
considerada no acto da sua inauguração, pelo então primeiro-ministro
Durão Barroso, como das mais modernas. A população escolar nessa altura
rondava os 30 alunos. Hoje restam sete alunos e mais cinco no
jardim-de-infância. Perante este cenário, a comunidade anda
sobressaltada com a possibilidade do seu encerramento, desfecho que o
autarca se recusa a admitir: "Se isso acontecer, a aldeia morre." Perante a desertificação, o autarca interroga-se sobre o esforço dos
portugueses para suportar a construção da aldeia que corre riscos de
entrar em colapso, se o desenvolvimento não chegar à Luz, ou pelos
projectos turísticos, ou pela componente agrícola. C.D.
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