in Público, 06.04.2009, Rui do Amaral Leitão, ex-presidente do Fundo Remanescente de Reconstrução do Chiado (FRCC)
Lisboa é uma urbe difícil. Vem dos longínquos tempos do neolítico, teve castros e citânias instalados na actual zona nobre da cidade, e foi assolada por catástrofes naturais, guerras e pestes sobretudo nos séculos XIV, XVI e XVIII que lhe moldaram o território e afeiçoaram o carácter. Chegados aqui, importa saber para que queremos Lisboa e como a queremos governada.
Há consensos que são postulados. A cidade deve ser confortável para
quem nela habita, fácil para os que nela trabalham, acolhedora e
deslumbrante para os visitantes. Tem um valioso património que é
preciso respeitar e uma miríade de problemas que urge resolver. Ninguém
hesita um segundo a indicar a entidade a quem cumpre assegurar estes
objectivos. Obviamente, a Câmara Municipal de Lisboa. Mas neste princípio de século a sorte tem sido madrasta para a
instituição. Começou com uma espécie da "dança das cadeiras". Barroso
foge para Bruxelas e deixa a chefia do Governo. Santana vai para o
Governo e deixa a câmara. Emerge Carmona Rodrigues. O PSD apoia Carmona
nas eleições e Lisboa livrou-se de boa ao recusar a sua confiança a
Manuel Carrilho. O PSD metralha furiosamente os próprios pés, retira o
apoio a Carmona e oferece generosamente o governo da câmara ao PS e ao
Zé que fazia falta. Atingiu-se finalmente um ponto de equilíbrio com
algum trabalho feito e muita atenção às próximas eleições. Mas a governança de Lisboa não é nada simples. O município está
estrangulado por um défice tóxico que se arrasta subtil e insidioso
desde o consulado de João Soares e que hoje se revela em todo o seu
esplendor. Não tutela nem controla os factores vitais para uma boa
governabilidade: segurança, coercibilidade no domínio do tráfego,
transportes públicos e saúde. E, pior ainda, tem de partilhar o
território com uma Administração Central arrogante e por vezes autista
de que a Administração do Porto de Lisboa é o expoente mais visível. A capital é hoje uma cidade em escombros com milhares de prédios a
ameaçar ruína e muitas centenas devolutos e abandonados. Consequências
de várias crises e sobretudo da lei Portas, que congelou as rendas,
aberração que ao poder político das últimas décadas nunca interessou
verdadeiramente sanear. Presentemente, a vereação lisboeta parece verdadeiramente preocupada
com a requalificação da cidade. Sob a direcção competente do vereador
Manuel Salgado, têm vindo a ser elaborados os termos de referência e
apresentado à discussão pública um número considerável de planos
urbanísticos, designadamente o Plano de Pormenor da Baixa Pombalina e o
Plano de Urbanização da Avenida da Liberdade e Zona Envolvente -
PUALZE, cuja preparação teve início, recorde-se, em 1981, e evidencia
propostas de assinalável qualidade. Se deste plano resultar a
recuperação dos espaços verdes da encosta de Santo Antão, hoje votados
ao abandono com confrangedor desleixo numa zona nobre da cidade, já
pode assegurar nota positiva. Parece, no entanto, que este esforço de requalificação da cidade peca
por dar demasiada atenção à árvore e ser incapaz de enxergar a
floresta. É louvável a preocupação com a Baixa-Chiado. São incontáveis
os estudos, programas, projectos e planos já realizados sobre esta área
privilegiada. No entanto, é preocupante que se tenha classificado por
decreto a Baixa-Chiado como Área Crítica de Recuperação Urbanística,
conferindo poderes de discricionariedade à autarquia, o que não é
saudável porque induz à infalibilidade e desagua na prepotência. Não
podemos ignorar que, em regra, o planeamento urbanístico enforma, por
razões históricas, de um pendor estalinista, desagradável para quem se
louva na democracia, e de que é um bom mau exemplo o estudo elaborado
por Maria José Nogueira Pinto e a sua equipa sobre esta área, quando
vereadora fugaz da Câmara de Lisboa. É francamente inaceitável que os proprietários destas zonas sejam, mais
uma vez, convertidos nos suspeitos do costume, sabendo-se bem que
existem discretos lobbies com desusada atenção ao desenvolvimento
destes processos. Por outro lado, a vontade de tudo resolver ao mesmo tempo sem
prioridades nem maturação das políticas leva por vezes os responsáveis
a cair no domínio da incongruência. O êxito de uma eventual
requalificação da Baixa-Chiado ficará seriamente comprometido se vier a
ser aprovado o plano da câmara para a circulação na frente Tejo que tem
um carácter eminentemente político e baixa consistência técnica,
levando o caos rodoviário às transversais da Baixa e ainda maior
desertificação ao comércio que aí ainda sobrevive. Entendida como mancha urbana, Lisboa é ainda hoje uma urbe equilibrada
com uma densidade de construção aceitável e um ritmo de microespaços
verdes notável assentes em quintais e logradouros, que lhe conferem
identidade própria e a tornam peculiar e atraente para quem a visita.
Mas este frágil equilíbrio instável parece em risco de romper-se sob a
brutal pressão dos interesses imobiliários que atacam duramente as
descontinuidades urbanísticas que são imagens de marca da urbe. Dois exemplos apenas: a destruição do parque do antigo Colégio dos
Maristas na Avenida Duarte Pacheco e, logo ao lado, a possível ocupação
com alta densidade de construção do enorme logradouro do antigo quartel
de Artilharia 1. Situações deste tipo poderão reproduzir-se
dramaticamente na sequência da desactivação dos hospitais do Desterro,
Arroios, Santa Marta, Júlio de Matos e outros que está a ser programada
pela Administração Central. Noutro registo, é angustiante a liquidação
metódica e inexorável da Avenida Duque de Loulé com total destruição da
sua genuinidade intrínseca, reproduzindo o modelo urbanístico que,
décadas atrás, massacrou e desqualificou as avenidas Fontes Pereira de
Melo e da República. E a cereja no topo do bolo parece mesmo ser o lançamento da terceira
travessia do Tejo, medida eleitoralista e aberrante que liquidará de
vez a pretensão de Lisboa ser uma cidade portuária de excelência e
provocará a desregulação anárquica do trânsito e da gestão urbana, com
sequelas imprevisíveis. Estamos numa encruzilhada e urge escolher o caminho. Cabe aos munícipes
e seus representantes institucionais decidir se querem uma cidade
singular com personalidade urbanística e identidade cultural ou o
sucedâneo de uma qualquer anódina metrópole sul-americana, arrimada na
margem da Europa.
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