in Expresso, 21 Mar 2009, Micael Pereira
Três anos depois de ter dito sim ao centro comercial Freeport na Zona de Protecção Especial (ZPE) do Tejo, o então presidente do Instituto de Conservação da Natureza (ICN), Carlos Guerra, escreveu dois pareceres para Manuel Pedro, já como consultor privado, em que argumentava que os índices de construção para um complexo turístico em Alcochete deviam ser maximizados.
À espera de ser aprovado, o projecto está também dentro da ZPE do Tejo,
mas numa área classificada com um nível de protecção ainda maior do que
no caso do Freeport, e para a qual uma portaria aprovada em 1999 em
Conselho de Ministros proíbe “qualquer nova edificação”. Os pareceres de Carlos Guerra remontam a Dezembro de 2004 e Fevereiro
de 2005 e são recomendações a propostas de arquitectura do complexo
turístico, apresentadas ao presidente da Câmara de Alcochete na altura,
José Dias Inocêncio, pelo ateliê de Capinha Lopes, o arquitecto do
Freeport, alvo de buscas em Janeiro deste ano, no âmbito da
investigação ao caso do alegado pagamento de ‘luvas’ em troca da
polémica luz verde ao outlet.
Manuel Pedro, arguido no processo e antigo consultor contratado pelo
Freeport para conseguir a aprovação do outlet (o que aconteceu em
2002), recorreu aos serviços de Guerra para que o ajudasse a preparar o
projecto de um hotel e de um conjunto de apartamentos turísticos na
Praia dos Moinhos, na área das salinas do Samouco, entre a vila de
Alcochete e a Ponte Vasco da Gama. “Conforme é do conhecimento dos
projectistas e foi abordado na reunião de 6 de Janeiro, nesta fase de
desenvolvimento do projecto importa sobretudo definir tipologias e
maximizar as áreas de construção disponíveis”, escreve Carlos Guerra no
parecer de Fevereiro de 2005.
O ex-presidente do ICN referia-se ao facto de as várias versões dos
desenhos feitos pelo gabinete de arquitectura entre 2003 e 2005 terem
sistematicamente áreas de implantação menores do que as existentes nos
edifícios abandonados das antigas secas de bacalhau da SNAB e da
PESCAL, duas propriedades contíguas que foram compradas por uma
misteriosa sociedade norte-americana, a Sulway, com o objectivo de
construir o complexo turístico, para o qual a empresa foi buscar
Capinha Lopes como arquitecto e, através dele, Manuel Pedro.
Contrapartida da ponte
Com 16 hectares, as duas secas fazem parte do território das salinas do
Samouco que o contrato entre o Governo e a Lusoponte para a construção
da Ponte Vasco da Gama obrigava a que fosse expropriado. Segundo a
Resolução do Conselho de Ministros 121-A/94, esse era um dos
“requisitos essenciais para a tomada de decisão quanto à atribuição do
subsídio da União Europeia, nos termos previstos na candidatura
apresentada pelo Estado português”. Os requisitos incluíram o
alargamento em 12 mil hectares da ZPE do Tejo, classificando as duas
secas com os níveis mais elevados de protecção (prioridade I e II).
As secas acabaram por não ser expropriadas. A maior delas, da SNAB, já
era do Estado mas seria leiloada em 1998 e comprada pela Riberalves,
com a intenção de recuperar a actividade de bacalhau. A Riberalves
vendeu-a, no entanto, à Sulway em 2003. Já a outra seca era de uma
empresa de Aveiro e esteve alugada à empresa SEA, de Manuel Pedro,
desde 1990, até ser comprada em 2006 pela Sulway, que negociou a saída
do antigo consultor do Freeport como arrendatário.
Erro cartográfico
Carlos Guerra diz no parecer de Dezembro de 2004, que a classificação
das secas como prioridade I e II se trata, “certamente, de um erro
resultante da escala de trabalho utilizada na cartografia”, já que os
critérios de classificação (zonas húmidas de lamas, mouchões, zonas de
lezíria e floresta significativas para a conservação da avifauna) não
correspondem ao que está no terreno (edificações). O mesmo argumento é
usado, em Fevereiro de 2006, pelo ICN para defender um parecer
favorável.
Tal como no caso Freeport, o projecto da Sulway implicou a abertura de
um processo de avaliação de impacto ambiental, em que o papel do
Instituto de Conservação da Natureza é essencial. O projecto, que
esteve em consulta pública em Janeiro, recebeu parecer prévio favorável
do ICN e aguarda uma decisão política por parte do actual secretário de
Estado do Ambiente, já com base num novo projecto de arquitectura,
depois de a Sulway ter dispensado Capinha Lopes em 2006.
A Declaração de Impacto Ambiental (DIA) assinada pelo secretário de
Estado deveria sair até ao final de Março, mas uma fonte da Comissão de
Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo
(CCDR-LVT) revelou ao Expresso que o processo foi suspenso nas últimas
semanas, para que seja avaliado se existe alguma incompatibilidade do
complexo turístico com as restrições impostas pela construção do futuro
aeroporto internacional de Lisboa.
No processo Freeport, houve entretanto mais uma pessoa a ser ouvida
esta semana pela Polícia Judiciária de Setúbal. Miguel Boieiro,
presidente da Câmara de Alcochete até 2001, admitiu aos jornalistas à
entrada da inquirição que acredita “ter havido malandrice” no caso.
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