Jornal Público, 12 Dezembro 2008
Após realização do Encontro anual da Ad Urbem, Fernando Gonçalves e João Cabral fazem o balanço dos Dez Anos da LBPOTU: "É preciso superar o urbanismo autoritário do Estado Novo e abrir caminho a uma governança democrática do território".
Há dez anos, nas vésperas do nascimento da lei de bases da política de ordenamento do território e de urbanismo (Lei n.º 48/98, de 11 de Agosto), muitos previam que esta iniciativa do governo de António Guterres iria resultar num nado-morto. E, ainda que o parto fosse bem sucedido, os mesmos auguravam que as bases teriam vida curta, pois estavam condenadas a ser letra morta.
Tão lúgubres perspectivas tinham a sua razão de ser. As tentativas de reforma da administração urbanística pareciam de antemão condenadas ao fracasso. Aliás, a prudência aconselhava manter o sistema de planeamento herdado do passado, cujas irracionalidades e delongas tinham a vantagem de transformar os municípios em dóceis bodes expiatórios do desarranjo urbanístico do território... Para quê mudar de enredo da história, correndo o risco de tornar transparente uma administração central do Estado?
O primeiro vaticínio - o abortar da iniciativa legislativa - esteve preste a cumprir-se. Na votação final global, a proposta de lei do governo foi aprovada, com votos a favor do PS, votos contra do PSD, do CDS-PP e de Os Verdes e a abstenção do PCP. Tratava-se, como se vê, de uma base de apoio demasiado acanhada para uma lei disposta a descentralizar o poder de planeamento e a aprofundar o paradigma constitucional da democracia participativa.
Felizmente, apesar da humildade do seu nascimento, a lei de bases escapou ao segundo dos funestos vaticínios, ou seja, não virou letra morta. Uma vez que votara contra a lei de bases, o PSD tinha margem de manobra para a alterar ou mesmo para a liquidar. Tal ensejo parecia ter chegado com o governo de Durão Barroso. Na circunstância, valeu a clarividência do ministro Amílcar Theias, que resistiu às pressões vindas de alguns sectores do partido do governo, recusando-se a mexer numa lei que, com conhecimento de causa, considerou estar a par do que de melhor existia na Europa.
Esta posição é consonante com as opiniões manifestadas pela maioria dos participantes em recente encontro que a Ad Urbem (Associação para o Desenvolvimento do Direito do Urbanismo e da Construção) dedicou à lei de bases: ao cabo de uma década, a lei goza de uma aceitação acrescida e mantém-se actual. Assim, ainda não morreu a esperança de que o regime nascido com o 25 de Abril seja capaz de superar o urbanismo autoritário do Estado Novo, abrindo caminho a uma governança democrática e participada do território.
Para tanto, será necessário desenvolver uma cultura de avaliação, cooperação e participação que não tem feito escola em Portugal ao contrário da maioria dos países da União Europeia. Para que a prática desta cultura de governança se consolide é imperativo que todas as partes se empenhem, assumindo responsabilidades e compromissos, da administração central e local aos agentes económicos, sociais e culturais e aos cidadãos.
Mas também é preciso que o sistema se desenvolva e garanta o enquadramento das boas práticas, nomeadamente procedendo à definição dos critérios uniformes para classificação e qualificação do solo e pondo em marcha a avaliação das políticas de ordenamento do território prevista na lei de bases e paradoxalmente suspensa após a sua entrada em vigor. Não faz sentido que políticas públicas centradas no desenvolvimento territorial de Portugal sejam avaliadas em instâncias internacionais, como a OCDE, ou comunitárias, como o ESPON, e simultaneamente se iniba a participação dos cidadãos portugueses na avaliação de políticas que afectam o seu quadro de vida.
Afinal de contas, ao cabo de dez anos, na lei de bases ainda proliferam letras mortas... O arranque da política europeia de coesão territorial deverá contribuir para insuflar nova vida nesta matéria. Esperemos que, nessa altura, se agradeça ao ministro João Cravinho a opção de colocar a palavra "política" no título da lei de bases e a vontade de conceber essa mesma política em termos que permitem, ao cidadão comum, participar e colaborar no governo do território e distinguir entre boas e más práticas.
Fernando Gonçalves & João Cabral
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