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O que vão fazer do Tejo? Imprimir E-mail

in Público, 21.05.2008, Helena Roseta, Vereadora da Câmara Municipal de Lisboa

Segundo a Resolução 78/2008 do Conselho de Ministros, de 15 de Maio, a pretexto da comemoração do centenário da República em 2010, o Governo prepara-se para executar "um conjunto de operações destinadas à valorização da frente ribeirinha de Lisboa", visando "criar uma nova visão para a cidade e para a sua frente ribeirinha", bem como "a reconciliação da cidade e dos seus habitantes com o rio Tejo".
Para cumprir tão vasto programa, o Governo aprovou um "documento estratégico" elaborado pela ParqueExpo e vai criar mais uma empresa, de capitais públicos, para gerir as operações, com "poderes especiais de contratação".

Não creio que seja este o caminho para "uma nova visão para a cidade". Não só por razões de método (o "documento estratégico" que o Governo aprovou não é mais do que uma lista de obras e não foi sujeito às regras legais do ordenamento do território), mas também por razões de fundo.

Não se pode "cortar o rio aos bocadinhos". Numa frente de rio de 19 km, um quarto será abrangido pela intervenção proposta (2,4 km na zona de Belém-Ajuda e 2,2 km na zona que inclui o Terreiro do Paço e que vai de Santa Apolónia ao Cais do Sodré). Não há um plano de ordenamento do conjunto, que aliás está a ser trabalhado pela câmara mas não está concluído. Não se teve em conta o comportamento biofísico do rio e da margem, nem a vulnerabilidade sísmica. Não se prevêem soluções inovadoras para vencer os aterros sucessivos construídos para instalações portuárias e infra-estruturas de transporte, que afastam Lisboa do Tejo. Não houve qualquer debate público sobre a lista de obras que se querem fazer, no valor de 145 milhões de euros. Se a estes montantes se somarem os 400 milhões de euros para o anunciado projecto Nova Alcântara, também elas desgarradas do ordenamento urbanístico da área, chegamos a valores que ultrapassam os 500 milhões de euros. São estas as prioridades da cidade? São estas as prioridades do investimento público? E que tem tudo isto a ver com a República?

Sabemos, olhando para o que se passa no mundo, que os novos modos de gestão portuária permitem libertar espaço. "Já não são precisos portos longos e lineares, mas infra-estruturas concentradas", como sublinhou recentemente em Lisboa o professor Matt Kondolf. Mas há duas grandes estratégias possíveis de intervenção: ou como um projecto de desenvolvimento urbano, como foi o caso da Expo-98; ou como um verdadeiro processo de regeneração da frente ribeirinha, que é o que muitas cidades portuárias ou com frentes de água estão a tentar ou já conseguiram.

Há que clarificar o modelo que queremos. O que interessa a Lisboa é o modelo da regeneração e não o do mero desenvolvimento urbano. Também entre nós há uma crescente reclamação do usufruto da orla ribeirinha pelos habitantes. O sucesso das "docas", em Alcântara, é revelador. Numa cidade em que a maior parte da margem continua interdita ao peão, cada nova aproximação ao rio é uma festa. Dêem-nos um pouco mais de Tejo, com porto e tudo. Deixem-nos circular a pé até à margem, ao longo dela ou até, de barco, pelo rio. Entendam-se as entidades, abram-se os percursos, deixem-nos passear pelo porto, não criem mais barreiras físicas e visuais para chegarmos ao rio. Entre isto e a "lista de obras" que o Governo aprovou vai um mundo.

Para quê criar mais uma empresa, quando o que é preciso é articular o porto e a cidade? Já se estão a contratar estudos e projectos, sem plano, sem debate público e sem concurso. Tudo isto me parece inaceitável. A Câmara de Lisboa devia, em minha opinião, contrariar esta forma precipitada e pouco clara de decisão e gestão.

O Governo quer repetir nestes troços de zona ribeirinha o modelo de desenvolvimento urbano da Expo-98. Mas aí partia-se de uma zona degradada, houve um concurso de ideias, houve um plano de ordenamento e havia um prazo para cumprir. Havia até mais: receitas imobiliárias a cobrar para pagar a operação. Agora estamos na zona mais nobre da cidade, a mais carregada de memória e história. O pretexto do prazo já se perdeu, porque para 2010 já não é possível ter senão projectos (a própria resolução do Conselho de Ministros reconhece-o). E não creio que ninguém admita, para as zonas agora em causa, aumentos de construção, como os que estão a ocorrer no Parque das Nações.

Não estamos em tempo de despotismo iluminado. No século XXI, o território tem de ser gerido com respeito pelo direito à informação, à participação e à transparência. Daí o meu alerta e o meu apelo. Não aceito que o Governo disponha dos espaços públicos e do dinheiro dos contribuintes sem ouvir as pessoas, sem que haja um plano de ordenamento aprovado e sem sequer esperar pela resolução das dúvidas legítimas do Presidente da República quanto aos novos usos e destinos a dar ao domínio público ribeirinho. Se o Governo quer intervir simbolicamente, faça-o no Terreiro do Paço: reponha o Cais dos Colunas no seu local, ou diga-nos por que ainda não o fez (a obra do metro deixou problemas hidrogeológicos complicados que devem ser tornados públicos). Mas não se queira fazer uma "obra de regime" à pressa e em desrespeito pelos próprios fundamentos da República: democracia, austeridade e interesse público.

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