in Público, 19.05.2008, Natália Faria e Carla Marques
O administrador da Sociedade de Reabilitação Urbana desvaloriza a polémica em torno do Mercado do Bolhão e defende que, ao contrário do que Rui Rio prometeu há quatro anos, o Estado deve permanecer como sócio maioritário da Porto Vivo. Para Arlindo Cunha, a nova Lei das Rendas devia ser mais liberal, competindo ao Governo subsidiar os aumentos.
Como é que responde às críticas sobre a lentidão da SRU? Em quatro anos só concluiu o prédio da Rua das Flores.
Isso é uma crítica profundamente injusta. É uma crítica de alguém que
não conhece como é que funcionam os processos de reabilitação urbana.
Lembro-me sempre de uma pessoa insuspeita, o doutor Jorge Sampaio, que
disse que nenhum balanço sério podia ser feito em matéria de
reabilitação urbana em menos de dez anos. E isto porquê? As pessoas não
têm noção, mas não havia, e não há, um levantamento cadastral dos
prédios urbanos. Se quisermos fazer comparação com a construção de um
edifício, andamos praticamente dois anos a fazer os caboucos. O prédio
da Rua das Flores, que era nosso, foi apenas para testar a metodologia
de abordagem da reabilitação, em termos de materiais e de custos.
Agora, apesar de a política de apoio à reabilitação urbana não estar
ainda muito definida em termos financeiros, já se percebe o papel de
facilitador que a SRU teve. Hoje, estamos a trabalhar em cerca de 40
quarteirões, dos quais 20 já estão em fase de início de obras.
Mas o Comissariado para a Reabilitação Urbana da Área Ribeira-Barredo (CRUARB) reabilitava uma média de 40 a 50 fogos por ano.
Digo sempre muito bem do CRUARB, porque toda a reabilitação do
edificado que se fez na Ribeira foi obra dele. Simplesmente, a
abordagem do CRUARB era completamente diferente. Era uma abordagem de
intervenção exclusivamente pública, em que a câmara ia comprando
prédios, reabilitava-os e depois ia-os entregando às pessoas. E
deixe-me dizer-lhe que se alguém pensa que a reabilitação urbana se faz
com rapidez está muito enganado. Neste país há leis que têm que ser
respeitadas, há processos jurídicos, há prazos... No nosso organograma,
desde que começamos a intervir num quarteirão até à fase de início de
obra, normalmente decorrem 37 meses. A nossa abordagem, além de ser
integrada, é sistémica e tenta criar dinâmicas na parte económica,
sobretudo. Em 30 anos, o CRUARB reabilitou 37.956 metros quadrados de
área edificada, e nós temos, nesta altura, 38 prédios em obra com uma
área de 70 metros quadrados e o que está a ser lançado levará a que,
até ao fim do ano, tenhamos 175 mil metros quadrados em reabilitação.
Também acha, como Rui Rio, que José Sócrates está a centralizar o
investimento em Lisboa, com a nova travessia sobre o Tejo, a ligação
Lisboa-Madrid e agora a intervenção na frente ribeirinha que vai
absorver 400 milhões de euros?
Não temos nada contra o facto de o Governo investir em Lisboa. O que
achamos é que é de elementar justiça que também aposte na reabilitação
urbana das cidades históricas que sofreram o impacto do congelamento
das rendas por causa da famosa legislação de Salazar. Cidades como o
Porto, Lisboa e Coimbra têm o edificado no centro histórico em
decadência, porque os proprietários não podiam aumentar as rendas e, a
dada altura, deixaram de fazer obras. Nesse sentido, nós apresentámos
propostas de financiamento ao Governo, num plano até 2012, e esperamos
que isso seja tido em conta.
Que propostas foram apresentadas em concreto?
Fizemos um conjunto de propostas para os vários quarteirões
prioritários num investimento que, até 2012 e da parte pública, podia
levar qualquer coisa como 800 milhões de euros. Este investimento não é
necessariamente despesa líquida, porque depois parte será recuperada
através da venda do edificado. O nosso masterplan foi trabalhado, do
ponto de vista da programação financeira, com uma equipa do Banco
Europeu de Investimentos e concluímos que seriam necessários 2200
milhões de euros para investir na reabilitação urbana. Dois terços
seriam da competência de privados e cerca de um terço da parte pública,
ou seja, os tais 800 milhões de euros. Isso deu origem a um contrato
entre o Estado português e o BEI, para um empréstimo a longo prazo.
Esse empréstimo era para se aplicar no início deste ano, mas não nos
agradaram as condições que o INH nos apresentou sobre os termos de
mobilização das verbas. Fizemos sentir isso ao INH e estamos à espera
que as nossas críticas construtivas sejam tidas em conta. Estamos a
contar com esse apoio e ainda com um outro investimento que é uma linha
de apoio à reabilitação dos privados, individualmente. Actualmente, só
os edifícios com contratos de arrendamento anteriores a 1980 têm
direito ao Recria.
Preocupa-o que os 60 milhões de euros disponibilizados pelo QREN não respondam à necessidade de recuperar para realojar?
Eu penso que, como propusemos, a reabilitação urbana do Porto merecia
um programa integrado próprio. Podia não ser com aqueles 800 milhões de
investimento público de que falei há pouco, podia ser faseado. Mas
penso que em cidades como Lisboa, Porto e Coimbra, onde existem
sociedades de reabilitação com estrutura própria, uma capacidade de
programação própria e capacidade de lançar parcerias, se justificava
fazer um programa integrado para cada uma delas. O Governo optou por
fazer programas nacionais ou regionais e depois concursos em que vários
municípios concorrem uns com os outros, mas acho que se justificava que
pelo menos os casos de Lisboa e do Porto fossem tratados de uma forma
específica.
Como é que se garante que, após a reabilitação, os inquilinos poderão
regressar com uma renda compatível com a sua condição socioeconómica?
Isso depois é a lei das rendas que se aplica. E achamos é que a lei das
rendas devia ser mais ousada para permitir encorajar mais o investidor
a investir e o proprietário a reabilitar. Depois, em termos de política
social, o Governo poderia aumentar os subsídios ou as compensações às
famílias mais carenciadas que não pudessem pagar a renda.
Há moradores e pequenos proprietários que se dizem fortemente
pressionados a vender os prédios aos grandes promotores imobiliários.
Isso pode acontecer. Mas ninguém vende um prédio à força, só vende se
quiser. O facto de haver pressões resulta em parte da dinâmica que se
criou. Criou-se uma dinâmica de reabilitação urbana que está a motivar
investidores, promotores e proprietário, e isso é positivo porque
valoriza o património que está ali. Depois cabe às partes entenderem-se
ou não.
Mas não há nenhuma forma de balizar a especulação?
Mas nós não estamos numa economia socialista! Estamos numa economia de
mercado e, como em todos os mercados, vai haver zonas muitíssimo caras
e outras mais baratas. Já hoje, pode comprar um edifício para
reabilitar numa das zonas menos valorizadas do centro histórico por
entre 200 a 300 euros o metro quadrado, mas nos Aliados o preço já sobe
para os 1000 ou 1200 euros o metro quadrado.
Não considera que há o risco de alienação do centro histórico do Porto aos grandes grupos económicos, nomeadamente espanhóis?
Francamente, não partilho dessa visão do mundo. O que nós precisamos é
que os centros das cidades voltem a ter vida: que os edifícios sejam
reabilitados ou sejam ocupados por pessoas, respeitando as
características de quem lá está e de quem venha de fora.
Sem o cuidado de acautelar o risco de o centro histórico se transformar em condomínio de luxo, só para alguns?
Desculpe, mas o que é que tem contra o luxo? Se for a cidades como
Barcelona ou Manchester, percebe que só se consegue contrariar a
tendência de decadência atraindo para o centro gente com outra
capacidade de compra.
A Câmara do Porto já comprou ao INH a quota de que precisa para
assumir a maioria na SRU? Rui Rio comprometeu-se a fazê-lo no prazo de
três anos, em 2004, para garantir que o PS viabilizava a SRU na
Assembleia Municipal.
Isso era para ser feito num próximo mandato. Este é o primeiro, e está
agora a chegar ao fim, pelo que o próximo conselho de administração é
que terá que negociar isso com o Governo. Mas o Governo já anunciou que
quer ficar minoritário. Agora é uma questão de negociar, porque eu acho
profundamente negativo que o Estado fique minoritário. A questão é,
pura e simplesmente, esta: se queremos fazer a sério um trabalho de
reabilitação urbana, isso custa muito dinheiro. Não podemos pensar em
voltar a dar vida ao centro histórico de uma cidade onde 35 por cento
das habitações estão devolutas, se não dermos, por exemplo, facilidades
de parqueamento automóvel. É este tipo de projectos que temos em
carteira e que pensamos que é possível financiar. E como é feito esse
financiamento na componente da despesa pública? Cada um dos sócios paga
a percentagem correspondente ao capital social, portanto, nesta altura
o Governo paga 60 por cento e a câmara 40 por cento. Se as posições se
invertem e o Governo fica minoritário, cai tudo nos ombros do
município. E estamos perante investimentos que têm uma escala
incomportável com as finanças de qualquer município.
Mas estão a tentar convencer o Governo a manter a sua posição maioritária?
Tem sido essa a nossa recomendação enquanto conselho de administração.
E espero que, pela menos, essa inversão não seja feita de forma abrupta
e, sobretudo, que seja feita depois de fazermos os principais
investimentos, ou seja, depois de 2011.
Que lhe parece a proposta do PS no sentido de se criar uma cooperativa
de interesse público para reabilitar as zonas que não suscitam o
interesse dos privados?
Falar nesses termos é pouco mais do que um sound byte. Nós vamos
trabalhar com cooperativas. No caso do morro da Sé, uma das componentes
é o envolvimento de uma cooperativa de habitação a custos controlados
para se reabilitarem alguns edifícios.
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