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Reformar a reforma da gestão do património imóvel Imprimir E-mail

in Público, 23.04.2008, Raquel Henriques da Silva, Walter Rossa, José Aguiar, Cláudio Torres

Quando o Governo lançou o Processo de Reforma da Administração Central do Estado (PRACE), pretendia uma administração "amiga" da economia, modernizar o Estado, torná-lo eficiente, mais capaz de regular e fiscalizar. A passagem do modelo à prática não foi fácil e em alguns casos falhou: o PRACE no Ministério da Cultura (MC), na gestão do património imóvel, dificilmente poderia ter sido pior. A reestruturação do Ministério da Cultura foi arrastada, caprichosa e opaca e ignorou a história da gestão patrimonial.

A Lei Orgânica do Ministério da Cultura não se adequa às Orgânicas do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar) e das Direcções Regionais de Cultura (DRC), relevando contradições e omissões. Após anos de críticas aos eternos conflitos entre o Ippar e o IPA (ou Ippar vs. DGEMN), são inadmissíveis as novas sobreposições.

A reforma foi irracional: as necessidades básicas (instalações, equipamentos, sistemas de informação, websites, etc.) não mereceram qualquer planeamento. Verifica-se a negação do objectivo original: o e-government, preconizado no Simplex, Estratégia de Lisboa e Choque Tecnológico fragilizou-se e é hoje no património pior do que foi ontem. Uma simples busca na Internet revela, um ano depois, os mesmos antigos sites e informação desactualizada.

Nos recursos humanos, técnicos de valor e experiência foram lançados no limbo e, apesar das promessas, não foram resolvidos os vínculos precários (do ex-IPA, da ex-DGEMN). Esta reforma foi mal concebida, os cidadãos mal servidos, desconhecendo interlocutores, vendo responsabilidades diluídas entre organismos. Os serviços criados são mais burocráticos, hierarquizados e disfuncionais. O Conselho Nacional de Cultura é inactivo, mantendo-se em função os anteriores conselhos consultivos, já extintos.

Estruturas fulcrais para gestão patrimonial ficaram incompreensivelmente fora do Ministério da Cultura: o SIPA e o Arquivo do Forte de Sacavém da ex-DGEMN (o melhor e bem equipado fundo documental do nosso património arquitectónico) entregaram-se a outro ministério!

As DRC são menos autónomas do que as antigas direcções regionais do Ippar: os seus pareceres carecem de despacho do Igespar, duplicando tempos de resposta! Resultaram da promoção das ex-delegações regionais do Ministério da Cultura, órgãos políticos e sem experiência em conservação. Incrivelmente, são essas DRC que detêm vastíssimas atribuições na gestão do património arqueológico, arquitectónico e museológico (e o apoio à actividade artística não-profissional, inventariando "manifestações culturais tradicionais, imateriais", etc.). Estas DRC estão mais expostas a subserviências e pressões regionais difíceis de escrutinar. A gestão da informação entre os níveis central e regional é quase inexistente e a história mostra que fases de penumbra operacional são terríveis para o património.

Surgem perguntas incómodas: de quem dependem os monumentos antes afectos ao Ippar (perto dos 200)? Em lista já publicada estão omissos mais de 75 por cento e não são imóveis banais, antes valiosíssimos exemplos: o Templo Romano de Évora, o Castelo de Santa Maria da Feira, a Sé do Porto, o Castelo de Penela, a Villa Romana de Cardilio, o Convento de S. Francisco de Santarém, o Castelo de Montemor-o-Novo, etc.

Esta política também pôs em risco património que é da humanidade. Veja-se a absurda "divisão" do Convento de Cristo: a charola e parte do conjunto monumental, do Igespar; o castelo e a Capela de N.ª Senhora da Conceição, da DRC-LVT; a mata envolvente, do ICNB.

A desesperante falta de recursos encerrou a Gruta do Escoural, São Cucufate, e congelou o forte investimento nos Itinerários Arqueológicos do Alentejo e do Algarve. Gastaram-se milhões, para quando o retorno? Monumentos nacionais como a Sé de Lisboa, o Convento do Carmo, a Igreja de S. Gião da Nazaré apresentam graves problemas de manutenção: não se sabe quem deve actuar (extintos a DGEMN e o Ippar)! Em Santa Clara, finaliza-se um histórico projecto patrimonial... Quem garante, após a inauguração, o seu funcionamento?

A difusão cultural, os eventos de dimensão internacional, a política editorial perderam dinamismo: qual o futuro das fulcrais publicações Revista Estudos/Património (ex-Ippar), Revista Portuguesa de Arqueologia (ex-IPA); Revista Monumentos (ex-DGEMN)?

Na Lei Orgânica do Ministério da Cultura, a Arqueologia desapareceu das atribuições da tutela, do Igespar, e das DRC! E foi muito positiva esta década de autonomia arqueológica (1997-2007), segundo revelam todos os indicadores: sítios inventariados, intervenções anuais, arqueólogos profissionalizados, empresas no mercado. Hoje perdeu-se autonomia técnica, orçamento, funcionalidade e recursos humanos.
Portugal assenta parte da sua identidade na sua relação com o mar, daí a relevância dos nossos vestígios arqueológicos subaquáticos, nas frentes ribeirinhas, estuários, portos, e mais além, no mundo inteiro: o Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática foi despromovido a divisão e paralisado!
Qual o futuro do Endovélico (expressão digital da Carta Arqueológica de Portugal), das Extensões Territoriais de Arqueologia, das edições científicas do IPA (49 edições em dez anos), da Biblioteca Arquivo Histórico da Arqueologia Portuguesa (seus melhores fundos documentais)? E perdeu-se o histórico apoio estatal à investigação arqueológica, na deterioração do Centro de Investigação em Paleoecologia Humana e Arqueociências (CIPA), hoje pálida imagem do que já foi.

Concluindo: esta reforma não descentralizou nem operacionalizou. A gestão do património foi inadmissivelmente politizada: os circuitos de decisão emperram, são incompreensíveis e não assentam em fundamentos científicos, técnicos ou culturais. Vislumbra-se uma alienação de património público como não há memória desde a privatização dos bens da Igreja, no século XIX e na 1.ª República.
Existe hoje um novo ministro da Cultura que pode (e deve) trilhar novos caminhos. É hora de iniciar crítica e colectivamente a correcção dos erros. Que este brado, polémico e político como os de Herculano e Junqueiro, contribua, para lá da festança e do foguetório, para a reforma da reforma (consultar mais informação em http://icomos.fa.utl.pt/).

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